O Cão
por Licínia Quitério
Morreu, o cão. Nos seus anos de ser cão, quase duas décadas deviam ter passado. Agora a dona não traz as duas voltas da trela acrescentadas às pulseiras várias e coloridas. Tem mais simetria no andar, mais disponibilidade do braço para ajeitar com elegância o chapéu que faz mudar com as estações do ano. Os olhos, escandalosamente azuis, não dizem dos seus anos de dona. Na falta do velho cão que lhe alentava o passo, adianta-se ainda mais ao dono que envelhece largamente nos seus anos de dono e que tem um braço para a bengala e o outro para os grandes sacos que a dona faz questão de encher de belezas e saudades. Não se consegue saber a que filme pertencem, a que livro, a que quadro, a que história que nos tenham contado. Devem ter-se amado loucamente, saltado barreiras, regressado a conveniências, a velhas caixas. Chegou o tempo, este, de se detestarem. Daí a aspereza com que ela lhe fala, ao sacudir, com as costas das mãos de veias azuis e verniz escarlate, as migalhas de bolo que ele sempre deixa cair na aba do colete de teen-ager. Os olhos dele estão cada dia mais pequenos, mais baços. Tenta acompanhar o andar apressado da sua Miss Daisy, mas é obrigado a parar por momentos, o fôlego a quebrar, a raiva a crescer, a mão na haste da bengala, num simulacro de golpe de Zorro na colecção de cromos, escondida no forro da gaveta da mesa de cabeceira.
À vista do fim, o amor torna-se insuportável, sufocante, e vira do avesso onde se lê o ódio. Um deles irá à frente, naturalmente, terminada a contagem dos seus dias de gente. O outro chorará, sinceramente, o amor perdido, o tempo perdido, o cão tão bom amigo de homens e mulheres que outras histórias não gostam de contar.
Licínia Quitério
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